quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Aos gias, mil perdões

Já contei essa história diversas vezes e não me canso de contar. A literatura nunca me doeu tanto como nesta vez. Nunca havia recebido um soco no estomâgo, um nó na garganta, um cala boca, como da vez em que li Perdoa-me por me traíres, do Nelson Rodrigues. A minha cama se revolveu em loucura, afastando toda a inércia que existia num adolescente 200 de 16 anos. As palavras do Nelson afastavam a letargia e me pediam pressa, sofreguidão, insensatez. Estava diante das últimas consequências de um amor. um amor que permite absolver uma adúltera, afinal de contas ela "é mais pura pois está salva do desejo que apodrecia nela".
Além de uma feroz crítica a uma sociedade mesquinha que perdura até hoje, uma sociedade corrupta que empurra os jovens à prostituição por reprimir sua sexualidade, mergulhando-os no ócio, o que me inquietava era o silêncio da Judite perante Gilberto. Eu esperava que que ela dissesse algo a ele, ao marido que a amara nas paredes infiltradas. Ele implorava por ter sido culpado por não merecer aquela mulher. Judite era fogo, carne, vermelho. Judite é a maior possibilidade para uma atriz. Judite é deusa de desbancar Ártemis e Afrodite.
O que eu esperava de fato era que a Judite o perdoasse em meio a palavrões, e que tudo terminasse debaixo dos lençois - mas assim não seria Nelson Rodrigues. À Judite foi concedido o veneno. Ao Gilberto o sanatório. Para uns apenas uma história apodrecida de uma família, segundo ato de uma peça estrondosa. Afinal, o terceiro ato havia mais: espancamento, incesto, beijos, tiros. É como se o fim de Gilberto e Judite permanecesse em aberto. O perdão não dado.
Na minha mente juvenil não cabia essa crítica. A obra era polêmica, provocante, perfeita para uma escola secundarista que sucumbia à inércia , a letargia. Era um soco, um cala a boca, um tiro nos estudantes. E foi. Me rendeu convites anos depois, reconhecimentos singelos, o bom-dia proibido na boca de Carla - nossa Judite.
Agora entendo que foi a Judite a mulher sensual que despetalou a rosa. A Judite é força sobrenatural e é dela a letra em reposta escrita pelo Chico buarque. Só esse homem que mapeia a alma feminina como uma verdadeira mulher para ser capaz de perdoar o Gilberto. Só o Chico para entender que "perdoa-me por me traíres" é lírica do começo ao fim. E só podia ser o Chico para me lembrar a nossa montagem de "Perdoa-me por me traíres, com direito apenas a uma apresentação.
Aos gias, mil perdões por terem chorado de rir enquanto eu me debrruçava em lágrimas. mil perdões por te amarem de mais. Perdão por ter erguido a mãe a língua, por ter espancado com ofensas. Perdão por querer vê-los , por contar os atrasos. E hoje, me perdoem por me traírem com a publicidade, a arquitetura, a computação, o direito. Me perdoem por não ter conseguido inquietá-los até hoje com o teatro do Nelson e com a música do CHico.

11/02/2010

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