segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A Medalha

Baseado no conto homônimo de Lygia Fagundes Telles

(No cenário apenas uma escada, a maior possível. Adriana entra soturna e silenciosamente para não encontrar-se com o pai, tira os sapatos, deixa-os na beira da escada. Ela vai subindo degrau após degrau, meio eufórica, até que o pai a surpreende)

Pai (seco) – Adriana!

Adriana (entediada) – Acordado ainda, pai?

Pai (virando a cadeira de frente para a platéia) – Precisava ser Também na véspera do casamento? Precisava ser na véspera?

Adriana (altiva) – Precisava!

Pai – Cadela. Já viu sua cara no espelho, já se viu?

Adriana (já sentada no último degrau da escada, tira um cigarro da boca e o acende) – Acabou, papai? Quero dormir!

Pai (suave) – Na véspera do casamento. Na vés-pe-ra. Você viu sua cara no espelho? Já se olhou num espelho?

Adriana (completamente cínica) – Já. Mas o véu vai cobrir minha cara, querido. O véu cobre tudo. (num surto) Ih, tem véu à beça. Vai dar uma beleza de noiva, você vai ver.

Pai – Cínica. Igualzinha à mãe. Ela ia achar graça se te visse, aquela cínica!

Adriana (ofendida) – Não fale da minha mãe!

Pai – Falo! Uma cínica, uma vagabunda que vivia no meio de vagabundos, viciada em tudo que é porcaria. Você é igual, Adriana. O mesmo jeito esparramado de andar, a mesma cara desavergonhada.

Adriana – Ela era pura!

Pai – Pura! Aquilo então era pureza? Hem? Uma vagabunda, uma irresponsável, viciada em bolinhas, igualzinha a você. Pura, imagine... Estou farta desse tipo de pureza, quero gente com caráter, sabe o que é caráter? É o que ela nunca teve, é o que você não tem. Na véspera do casamento...

Adriana (desafiadora) – Na véspera ou no dia seguinte, que diferença faz?

Pai (ressentido) – Ás vezes nem acredito. Uma filha assim.

Adriana – Assim, como? Sou ótima, pai. Uma ótima menina (saliente) é o que todo mundo diz.

Pai (descontrolado) – Por que não se casa com ele? Hem? Porque não se casa com ele, Adriana? Por quê?

Adriana – Com ele quem?

Pai – Com esse vagabundo que acabou de te deixar no portão.

Adriana – Porque ele não quer, ora.

Pai – Ah, porque ele não quer. (triunfante, entre dentes) Gostei da sua franqueza: “porque ele não quer, ora!”. Ninguém quer, não é mesmo? Você já teve dúzias e nenhum quis, só mesmo esse inocente do seu noivo...

Adriana – Mas ele não é inocente, paizinho. Ele é preto!

Pai – Por que você diz isso?

(Adriana deixa cair o cigarro. Desce as escadas, calça os sapatos, e com o salto esmaga o toco do cigarro. Em seguida, pega uma mecha do cabelo, põe abaixo do nariz)

Adriana (menina) – Olha aí meu bigode, agora tenho um bigode!

Pai – Responda. Adriana, porque você diz isso? Que ele é preto.

Adriana (fingida) - Porque é verdade, querido. E você sabe que é, mas não quer reconhecer, esse horror que você tem dos pretos. (irônica) Não deve ser mesmo muito agradável ter uma filha casada com um preto, preto disfarçado, concordo. Mas preto. (aterrorizada) Já reparou nas unhas dele? No cabelo? (rindo) Reparou, sim, ih, você é tão atento, um faro que vai longe! (num devaneio) Sou branca, mas meu sangue é podre, o sangue dele é que vai vigorar, um sangue fortíssimo. Seus netos vão sair bem moreninhos, aquela cor linda de brasileiro, sabe como é? Claro que sabe, um perito no assunto. Hum? Nunca vi ninguém reconhecer preto assim fácil como você reconhece, o tipo pode botar peruca, se pintar de ouro e de repente, num detalhe, num detalhezinho...

Pai – Tenho muita pena desse moço. Imagine, casar com uma coisa dessas.

Adriana – Mas ele vai ser podre de feliz comigo, você vai ver, pai. (desdenhosa) Se encher muito o saco, despacho o negro lá pros States, tem uma cidade lindinha chamada Litlle Rock, já ouviu falar nessa cidade? Ouviu, sim, você adora ler essas coisas. (em gargalhada) Lá a diversão é linchar a negrada...

Pai (inclinando-se na cadeira) – Você não pode mais me ferir, Adriana. Ela também não conseguia, podia fazer o que quisesse, dizer o que quisesse. Não me atingia mais. Ficava aí na minha frente, com essa sua cara, igual, a se retorcer como um vermezinho viciado e gordo.

Adriana (paranóica) - Emagreci seis quilos!

Pai - E gordo. Você duas são tão parecidas, Adriana. Tão parecidas...

Adriana (sorri e se fecha de repente) - Acabou? Quero dormir, querido.

Pai (desmotivado) – Fiz o que pude!

Adriana (empurrando a cadeira) – Então, ótimo, agora queria dormir um pouquinho, posso?

Pai – Nem quinze anos e já se agarrando com seu primo na escada, lembra? Lembra sim... Nem quinze anos, Adriana, nem quinze anos e já emendada naquele devasso.

Adriana – Ele não era devasso!

Pai – Não? E aquelas doenças todas? Dependurado em negras, viveu anos com uma, pensa que não sei?

Adriana (ofendida) – Ele não era devasso. E ele me amou!

Pai – Amou... Fugiu quando foram pilhados, lembra? Ah! Lembra sim! Fugiu como fugiram os outros, nenhum quis ficar, Adriana, nenhum. Vi dezenas e dezenas de homens te apertando pelos cantos, uma escória que nem dinheiro para o hotel tinha. Um por um, fugiram todos!

Adriana (num esgar de choro) - Ele me amou.

Pai (empunhando uma caixa) – Olha, dentro desta caixa está a medalha que foi da minha avó, depois passou pra minha mãe, que conversou consigo, e me pediu que te entregasse no dia do seu casamento. Você casa amanhã, não? Casa hoje, já é dia. Leva a medalha, Adriana. É sua. Quando sua filha se casar, será de sua filha. Só espero que não enegreça no seu pescoço.

(Adriana sobe novamente a escada, de salto, senta-se no último degrau, tira os sapatos e conversa com eles)

Adriana – Você fugiu de mim na escada. Porque você fugiu de mim na escada, hem? Eu precisava tanto de você. (gritando) Está escutando?

(Adriana atira os sapatos do alto, pára, enxuga as lágrimas, tira a medalha da caixa, enrola numa fita e amarra no degrau da escada, e desce calmamente)

Um comentário:

Felipe disse...

10/09 Acabei de assistir o ensaio, tá muito bom. Boa Sorte pra vc6.